Este texto não é um artigo acadêmico!!! É apenas uma reflexão.
Voltando a reler os clássicos, apenas por deleite e um pouco de refrigério da alma, deparei-me com questões interessantes no que se refere ao papel da mulher em Atenas no período clássico.
Sabe-se que mulheres, crianças e escravos eram excluídos da vida pública em qualquer situação e não usufruíam de nenhum tipo de direito político, o título de cidadão era reservado apenas aos homens, nascidos de pais atenienses. Todavia, Péricles, em sua reforma no ano de 451 a. C., restringe o acesso à cidadania, já que se tornava necessário ter pai e mãe ateniense para obter a cidadania, quando anteriormente, bastava que o pai fosse de Atenas. Essa era uma mudança significativa na pólis ateniense, posto que à mulher também era estendido do título de cidadã, mas apenas para gerar filhos que fossem cidadãos e filhas que pudessem se casar com outros cidadãos. É interessante pensar que a mulher tinha o título, por meio dela era concedido o título aos homens descendentes, mas não usufruía dele.
Elas estavam destinadas ao espaço privado, enquanto os homens usufruíam do público, mas isso não quer dizer que elas não pudessem sair à rua. Havia festivais, por exemplo, que eram destinados às mulheres, em louvores à deusa Atena como as Panateneias ou as Tesmofórias, que era um festival exclusivamente feminino, ligado principalmente à fertilidade agrícola e humana, em homenagem a Deméter e a Perséfone/ Koré. Portanto, elas partilhavam de um grupo social diferenciado que também era necessário ao progresso espiritual e o sucesso da atividade agrícola pólis ateniense durante o ano vindouro.
Ainda falando de Atenas, é importante que se remeta a um texto de Santo Agostinho (A Cidade de Deus, Livro XVIII, Capítulo 9, p. 1717-1718) que cita Marco Terêncio Varrão explicando que é o voto feminino que atribui o nome da cidade à deusa Atena.
Há também o caso de que em Atenas o nome de uma mulher não podia ser mencionado em público, a não ser que ela tivesse baixa reputação. Em casos arbitrados nos tribunais em Atenas, como por exemplo, o assassinato de um marido, a mulher era sempre representada por um homem. Contudo, se fosse necessário que ela apresentasse provas, seu testemunho era tomado mediante os membros da família e introduzido aos argumentos, aos quais, muitas vezes, atribuía-se considerável relevância.
O nome de uma mulher era mencionado em público fora de sua família somente se ela fosse escrava, prostituta (hetaira), sacerdotisa ou se estivesse morta. Os nomes oficiais também eram diferentes para homens e mulheres. Os homens atenienses tinham três nomes: o pessoal, o patronímico e o demótico – nome da deme original da família ou o seu lugar de residência. As mulheres tinham os nomes pessoais e eram identificadas pelo nome do pai ou do marido com um possessivo, mas não tinham demódicos e não estavam registradas nas listas das phraties (clãs hereditários e de parentesco) ou no registro das demes. Mesmo nas lápides de mulheres estavam inscritos os demódicos do pai ou do marido.
(COLE, 2008, p. 41)
Havia também uma categoria de mulheres, a qual se evidenciava por Aristóteles de “esposas dos pobres” que trabalhavam no comércio. Essas mulheres trabalhadoras e negociantes estavam exclusivamente na camada mais baixa da escala econômica, elas podiam se ocupar de lã, comércio varejista e aleitamento, ficando impedidas de terem ocupações que ganhassem dinheiro. Aliás, elas eram proibidas por lei de realizar negócios com quantias acima de três dracmas (moeda vigente na Atenas Clássica).
Deixo aqui um pensamento: qual era o papel da sacerdotisa e da pitonisa? Elas pertenciam à alguma classe (escrava, meteca, cidadã)?
E na literatura?
A literatura grega nos mostra mulheres bem diferentes. Comecemos por Helena.
cheguei, fugida, tálamo, irmãos, filha e amigas
queridas para trás largando.
Ilíada, canto III, vv. 176-177
Helena de Esparta, depois alcunhada de Helena de Troia, era filha de Zeus (metamorfoseado em cisne) com a mortal Leda. Dessa união, Leda colocou dois ovos: um com os imortais filhos de Zeus, Helena e Polux e o outro, com os irmãos mortais, cuja paternidade é atribuída a Tíndaro, Clitemnestra e Castor. Era considerada a mulher mais bela do mundo antigo, devido sua descendência divina, foi roubada por Teseu quando tinha 11 anos, mas recuperada por seus irmãos e devolvida à terra natal. Por ser tão linda, tinha diversos reis e príncipes de toda Grécia como pretendentes e, para não causar nenhuma guerra interna por entregar a filha para um ou para outro, Tíndaro, seu pai mortal, deixou Helena escolher o seu esposo. Antes da escolha, todavia, Odisseu fez com que todos os reis da Grécia firmassem um pacto de proteção à Helena e ao marido que ela escolhesse. É importante salientar que tal medida adotada por Helena é emblemática, pois, mesmo sendo espartana, ou seja com costumes diferentes das atenienses, Helena demostra força e decisão. E isso só é se considerarmos a importância da mulher espartana em sua sociedade.
O segundo rapto de Helena, protagonizado por Páris Alexandre, príncipe de Troia, levou a Grécia a uma guerra de 10 anos, cujos últimos meses foram contados por Homero. O rapto não aconteceu apenas porque os dois estavam apaixonados, na verdade, o passado mítico de Páris diz que ele foi convidado para ser juiz em uma desavença ocorrida com 4 deusas: Hera, Atena, Afrodite e Éris. As três primeiras foram convidadas para o casamento de Tétis e Peleu (pais de Aquiles) e a última, Éris, não tendo sido convidada, apareceu na festa com uma maçã de ouro com a inscrição “à mais bela”. As três deusas reivindicam o pomo e Zeus para não entrar em “pendenga” com nenhuma das deusas, indica que Páris julgue quem é a mais bela. As três deusas aparecem para Páris oferecendo presentes diversos: Hera oferece o poder e riqueza sobre o mundo antigo, Atena oferece glória, fama e sabedoria para vencer todas as batalhas e, Afrodite, oferece a mulher mais bela do mundo como esposa. Páris escolhe Afrodite.
Vale salientar que quando Helena fugiu com Páris, abandonou Hermíone, sua filha com nove anos. Por tantas acusações que caíam sobre a rainha de Esparta, o sofista Górgias escreve “O Elogio de Helena”. Para defender e inocentar Helena da culpa de ser a única responsável pela guerra, além de restaurar a boa fama da rainha, o retórico Górgias escreve um Elogio (que, para outro retórico, Isócrates, é considerado uma apologia – discurso de defesa), para o qual o autor apresenta quatro motivos pelos quais Helena não deve ser culpada: a influência dos deuses (– mais uma referência ao episódio do pomo e ao julgamento de Páris, para esta não há como fugir); a violência a qual é submetida no rapto (tendo o raptor utilizado de força física para subjugá-la, ele merece ser culpado); a persuasão pelo discurso (se ela foi convencida por meio da persuasão retórica, não merece ser culpada); ou por Amor (seja o deus ou o que o autor denomina de ‘doença humana’). Ou seja, de acordo com Górgias, Helena foi uma vítima dos deuses e/ou de Páris.
Quando se faz um retrocesso histórico de como a personagem Helena nos foi apresentada, pode-se perceber que há uma carga semântica de julgamento de suas ações. A reputação de Helena nos é intrínseca culturalmente em sua composição. De acordo com Coelho (1997), esse tratamento dado à personagem é posterior aos cantos homéricos, “pois na Ilíada os males da guerra não são atribuídos a uma falta sua e na Odisséia as críticas a ela ainda são brandas.” Na Ilíada, o poeta coloca a absolvição de Helena na fala do rei Príamo, conforme ilustra os versos a seguir (Ilíada, III, v. 161-166):
Assim falavam. Príamo, porém, para Helena
se dirigiu: “Querida filha, vem sentar
junto a mim, para ver teu esposo de outrora,
teus parentes e amigos (não te cabe a culpa,
penso, do polilágrimo prélio de Aqueus
e Tróicos travam; sim aos deuses) […]”.
Em seguida, a resposta de Helena à Príamo (Ilíada, III, v. 171-177):
Divina-entre-as mulheres, respondeu Helena:
“És para mim, querido sogro, venerável
e temível. A morte má, sorte propícia
– sinto – me seria, quando com teu filho, aqui
cheguei, fugida, tálamo, irmãos, filha e amigas
queridas para trás largando. Não se deu […]”.
Helena culpa Afrodite (Ilíada, III, v. 394-401):
[…]. Assim falou a deusa,
e comoveu-a no íntimo. Mas percebendo
o colo pluribelo e os seios capitosos
da deidade, e os seus olhos de um fulgor marmóreo,
atônita, exclamou Helena: “Ó demoníaca4
por que esse teu desejo de enganar-me tanto?
Logo me levarás à Frigia ou à Meônia,
onde se encontre um ser falante a ti dileto. […]”
A resposta de Afrodite (Ilíada, III, v. 413-418):
Furiosa, respondeu-lhe a divina Afrodite:
“Mísera, não me incites. Se me encolerizas
e te deixo, terás meu ódio em vez do meu amor.
Se entre Aqueus e Troianos eu suscitasse a ira
lutuosa contra ti, de má morte morrias”.
Falou. Helena, filha de Zeus, teve medo.
É importante ressaltar que na resposta de Afrodite há a certeza de que Helena não é odiada pelos que lutam na guerra, tudo porque, de acordo com a mitologia, a contenda era inevitável: era preciso diminuir o peso da terra para que Atlas continuasse a suportando. Ou seja, Homero assume a posição da inevitabilidade da guerra, por isso, não culpa Helena. Já Górgias a defende por outro viés: a inevitabilidade das circunstâncias a qual Helena é exposta, no que tange à moralidade.
Helena foi “cantada” em diversos gêneros de discurso: no épico, de Homero (como já exemplificado) e nos Cypria (texto para nós perdido que narra os acontecimentos anteriores à Guerra e dá atenção ao julgamento de Páris); no histórico, de Herótodo, no discursivo deliberativo, de Górgias e Isócrates (embora, para este último, Górgias tenha escrito um discurso de defesa e não um elogio, visto que o elogio tem por objeto elogiar as virtudes); na tragédia (Helena), com Eurípides. Segue o exemplo (v. 31-36 e 57-59):
Mas Hera indignada por não ter ganho da deusa,
Nada trouxe para o meu casamento com Alexandre,
Ela não me deu ao filho do Rei Príamo, mas uma imagem (fantasma)
semelhante a mim, que vive e respira, coloca junto aos céus,
que parece me ter, conceito vazio, não me tem.
[…]
Hermes, o renomado, ainda insistirá na terra
de Esparta, percebendo como não tendo ido à Ilion,
de forma que nunca fui para cama em companhia do homem.
(Tradução própria)
Antígona
Antígona é a princesa de Tebas, filha de Édipo e Jocasta, irmã de Ismênia, Etéocles e Polinice. Acompanhou o martírio do pai, depois de ter furado os olhos e o acompanhou até Colona, ficando com ele até sua morte e depois retornou à Tebas. Seus irmãos tinha acordado dividirem o reinado entre eles anualmente. Todavia, Etéocles, passado primeiro ano, recusou-se a entregar o trono a Polinice, que recorreu ao rei de Argos, Áfrastos, seu sogro, que o ajudasse. O caso resultou no episódio “Os Sete Contra Tebas”. Após muitas lutas, os irmãos, em embate direto, morreram. Creonte, agora rei de Tebas, por ser irmão de Jocasta, determina por um edito que a Etéocles seria dispensada honras funerárias, quanto Polinice, deveria ter seu corpo abandonado onde caíra, proibindo qualquer honraria fúnebre de quem quer que fosse, sob pena de morte. Antígona, apesar dos protestos de Ismênia, decidiu enterrar o irmão com suas próprias mãos. Antígona acusa Creonte de ir contra os próprios deuses:
“Tua lei não é a lei dos deuses; apenas o capricho ocasional de um homem. Não acredito que tua proclamação tenha tal força que possa substituir as leis não escritas dos costumes e os estatutos infalíveis dos deuses. Porque essas não são leis de hoje e nem de ontem mas de todos os tempos. Ninguém sabem quando apareceram. Não, eu não iria arriscar o castigo dos deuses para satisfazer o orgulho de um pobre rei. Eu sei que vou morrer, não vou? Mesmo sem teu decreto. E se morrer antes do tempo aceito isso como vantagem. Quando se vive como eu em meio a tantas adversidades, a morte prematura é um grande prêmio. Morrer mais cedo não é uma amargura; amargura seria deixar abandonado o corpo do meu irmão.”
SÓFOCLES. Antígona. Tradução Millôr Fernandes. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 25-26.
Antígona foi condenada à morte por Creonte, que também perdeu seu filho, noivo dela e sua rainha que se matou de tristeza pela morte do filho. A única a sobreviver da família que Édipo e Jocasta formaram foi Ismênia, do mais todos morreram tragicamente.
Há muitas outras…
Há ainda outras mulheres emblemáticas presentes na literatura, como a própria Clitemnestra, irmã de Helena, que matou o rei Agamemnon, sobrevivente de Troia, mas foi assassinada por Orestes, incitado por Electra, fatos contados na trilogia Oresteia.
Medeia é outra mulher grega, a feiticeira que ajuda Jasão no episódio do Velocino de Ouro, é cheia de astúcia e rituais, como enviar um vestido envenenado para Creusa, pretendente de Jasão. Na versão de Eurípedes, Medeia mata os próprios filhos para punir Jasão pela infidelidade, para vingar a sua honra (timé – τιμή). Fez uma trilha de mortes: matando seu próprio irmão, Absirto; o tio de Jasão, Pélias; a noiva de Jasão, seus filhos com Jasão e, ainda, tentou fazer o rei Egeu matar seu filho Teseu. Medeia se casou com Egeu depois de fugir de Jasão. Fugiu de Atenas para Fenícia e de lá foi refugiar-se na Ásia.
Finalizo aqui a compilação de duas mulheres gregas emblemáticas da literatura (apenas duas em um universo imenso!) que são notáveis para sua época. Deixo, entretanto, propositalmente, as personagens de comédias de Aristófanes de fora, já que, a proposta da comédia era fazer uma crítica social que buscava operar à beira do absurdo, para causar com mais proeminência o efeito catártico do riso e da diversão. Posto que mulheres fazerem greve de sexo (Lisístrata) ou uma Assembleia de Mulheres (Ekklēsiázousa) que mostra mulheres que se apoderam da vida política da pólis grega devia causar muito riso naquela sociedade por ser, tal comportamento, inadmissível ao sexo feminino da Atenas Clássica.
Bibliografia:
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CARTLEDGE, Paul (org). ALVES, Laura (trad). REBELLO, Aurélio (trad). História ilustrada da Grécia antiga. Rio de Janeiro, Ediouro, 2009, p. 543.
COELHO, Maria Cecília de Miranda Nogueira. Górgias: verdade e construção discursiva. Dissertação (Mestrado em Letras Clássicas). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.
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ISÓCRATES. Elogio de Helena.
SANTO AGOSTINHO. A Cidade de Deus. Tradução, prefácio, nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian (trad. do original de 150 a.c), 2ª Ed., 2000, p. 1717-1718.
SÓFOCLES. Antígona. Tradução Millôr Fernandes. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
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A HISTÓRIA ILUSTRADA DA GRÉCIA ANTIGA: Arte, Cultura, Filosofia. São Paulo: Editora Escala, s/d. 126 p.
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COLE, Susan. Mulheres de Atenas. In: Revista História Viva, Ano IV, Nº 58. São Paulo: Duetto, p. 38 – 41, 22 jul. 2008.
GOURBEILLON, Annie Schnapp. Tróia a Guerra de homens e deuses. Tradução de Alexandre Massella. p. 48-59. In: Revista História Viva. Ano I. Nº 6. São Paulo: Duetto, 2004.
KYRTATAS, Dimitris. Direitos, deveres e desonra. In: Revista História Viva, Ano IV, Nº 58. São Paulo: Duetto, p. 32 – 37, 22 jul. 2008a.
KYRTATAS, Dimitris. Todos os homens são iguais, mas… In: Revista História Viva, Ano IV, Nº 58. São Paulo: Duetto, p. 42 – 45, 22 jul. 2008b.
Como citar esse texto:
BORGES, Patrícia Andréa. A hora e a vez da mulher na Grécia Antiga. Portal Universo ao Meu Redor. Publicado em 28/01/2019. Disponível em: https://universoaomeuredorblog.wordpress.com/2019/01/28/a-hora-e-a-vez-da-mulher-na-grecia-antiga/. Acesso em: dia/ mês/ ano.