Breve reflexão sobre os heróis nos episódios notáveis de “Os Lusíadas”
Introdução
Esses três cantos, conhecidos como “episódios notáveis” da epopeia portuguesa “Os Lusíadas”, coloca em pauta o caráter do herói, que está na empreitada para as Índias: um herói que assassina brutal e vilmente uma mulher indefesa; um herói que não escuta a experiência de um velho homem, para seguir um sonho de fama, glória, ambição e grandiosidade: “vã cobiça”, e um herói que reconhece que seu representante no poema, o “ilustre peito lusitano” é um ignorante das letras, porém valoroso nas armas, por isso tem licença para continuar sua viagem por meio da continuação da epopeia.
Canto III – D. Inês de Castro
Camões abre o canto III invocando a musa da epopeia a fim de cantar a genealogia heroica dos portugueses, partindo de sua localização geográfica na Europa (estância 6), até chegar à descrição de Portugal. A partir desta, passará a cantar toda a genealogia dos reis portugueses e suas vitórias: a batalha de Ourique (estância 48), a luta contra os Mouros (estância 50), a batalha de Salado (estância 107) e o episódio de Inês de Castro (estância 118).
O que mais chama atenção desta narrativa tão cheia de feitos heroicos obtidos pelas armas, por grandes batalhas e por opositores tão bons, mas que são vencidos, pois os portugueses são maiores e mais valorosos, é a narração do assassinato de Inês de Castro, mulher que, subjugada pelo sogro, Afonso IV, é morta por ser o grande amor de seu filho, D. Pedro. Ela, frágil e delicada, torna-se uma heroína romântica em plena narrativa épica (parte extremante lírica dessa epopeia). Contrapõe-se ao caráter valoroso e heroico, pois o rei manda matá-la, o mesmo rei Afonso IV que acaba de voltar vitorioso da Batalha do Salado, presta-se a uma atitude tão pouco heroica.
O rei é pressionado pelo povo a matar a frágil Inês (Inês de Castro era uma espanhola de quem o príncipe D. Pedro se tornou amante. Essa relação causava apreensão na corte portuguesa, o que fez o rei D. Afonso IV mandar matá-la.) que, pede e implora por sua vida (utiliza-se até dos netos do rei, mas este tenta até perdoá-la, mas, por razões de Estado, mantém-se inflexível). Mesmo em posição de desvantagem, consegue, por meio dela, lançar críticas ferozes, apesar de camufladas, ao caráter de seus assassinos, principalmente quando estabelece uma comparação entre eles e os animais selvagens – os homens saem perdendo desonrosamente, mas ainda assim, ele manda aplicar a sentença. E, na estância 130, Camões culpa o povo e absolve o rei.
Na narrativa, Vasco da Gama, mostra-se indignado diante do assassinato, qualificando-o como cruel e covarde. Para reforçar esse aspecto, usa adjetivos constantemente carregados de criticidade e verbos, como “encarniçar”, que poderiam ser usados para animais (estância 132).
Estância 130
“Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra üa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais – e cavaleiros?”
Estância 132
“Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos
No futuro castigo não cuidosos.”
É possível que esse episódio dialogue com a tragédia grega Antígona, pois, assim como D. Afonso IV, o rei Creonte é obrigado a sancionar a morte da heroína, por representar o Estado.
Antígona é condenada à morte porque decide enterrar seu irmão, Polinices, que é considerado um traidor de Tebas e, por isso, tem proibido seus ritos fúnebres. A moça, contrariando o Edito de Creonte, sepulta-o e é condenada à morte. Antígona uma tragédia do Estado, onde a religião e o Estado grego se confrontam, resultando na morte da heroína que permanece firme em seguir o rito dos deuses, mas punindo até as ultimas circunstâncias aquele que acusa a heroína de ser inflexível em suas atitudes.
O caráter frio apresentado por Creonte, aparecerá na peça Antígona, demonstrando que o Estado Grego, pode se colocar, inclusive, acima da religião. Creonte acusa Antígona de inflexível, enquanto inflexível é o próprio Estado, representado por ele, porém, mostrando ser influenciável, a partir de um discurso do cego Tirésias, o qual, posteriormente, será apoiado pelo coro e tenta o persuadir. Tal fato, que o diferencia de Édipo, por um lado, aparenta certa fragilidade do governante que não mantém a sua postura, mas, por outro lado, também apresenta um governante que escuta os pedidos do povo e é capaz de mudar de opinião em função desse coro de cidadãos, considerando que este coro é composto de cidadãos e Atenas é uma democracia.
Antígona
Coro: Prudência, Créon, filho de Meneceu.
Tradução de Guilherme de Almeida: Antígona (versos 1098 a 1107).
Créon: Que devo eu fazer? Fala e obedecerei.
Coro: Tira essa mulher da prisão subterrânea
e mandar enterrar o morto profanado.
Créon: Isso é o que aconselhas? Deverei ceder?
Coro:Quanto mais depressas, ó rei, porque os
castigos dos deuses não tardam de alcançar os réus.
Créon: Custa-me, ai de mim! Voltar atrás, mas volto,
já que é inútil ir contra o que é necessário.
Coro: Vai fazê-lo, e já! Não confies a outrem.
O mesmo ocorre, portanto, com D. Afonso IV, que até se inclina a absolver Inês, entretanto é pressionado pelo povo, que pede uma reparação, por medo do quê essa união ilegítima entre D. Pedro e D. Inês possa resultar ao Estado Português: medo esse edificado em 1580, oito anos após a publicação do poema épico aqui estudado e no ano de morte do próprio poeta, com a união Ibérica, resultando em um forte crescimento do nacionalismo português e na exaltação de sua pátria, que culminará em nova separação em 1640, transformando assim o povo português.
Canto IV – O Velho do Restelo
Continuando sua narrativa épica, Camões adentra o canto IV rememorando, ainda, os feitos heroicos da história dos portugueses: a batalha de Aljubarrota (estâncias 24 a 43), as conquistas da África (estância 55), a batalha de Toro (estância 58), D. Manoel e seu sonho de dominar as Índias (estância 48, 55, 61, 67, 69 a 73). Vasco da Gama narra a própria viagem (estância 79). Entretanto, antes da esquadra lusitana partir para os grandes feitos, está o episódio do velho do Restelo:
Estâncias 94 e 95
“Mas um velho, d’aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d’experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
– Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cüa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!”
No momento em que os navios começam a sair, um velho surge entre o povo na praia. É uma figura bastante significativa, pois simboliza a sabedoria acumulada pela experiência de vida. Constrói-se, assim, uma personagem convincente, ainda mais quando se trata de alguém que fará oposição à Expansão Marítima Portuguesa, tão elogiada no épico camoniano.
A crítica do Velho do Restelo será, primeiramente, contra o que na época chamava-se “Fama” e que é entendido como prestígio social. Em sua visão, esse sentimento é responsável por inúmeros sofrimentos e desgraças, individuais e coletivos, inclusive os que serão causados pela viagem de Vasco da Gama.
A partir de então, o questionamento é dirigido ao Homem, que gosta de arriscar aquilo que até Jesus temeu perder: a vida.
Num terceiro instante, há a defesa de outro tipo de expansão, dessa vez sobre o território mouro. De acordo com o velho, tal feito garantiria aos portugueses a propagação do Cristianismo, além da aquisição de terras, riqueza e fama, o mesmo que seria alcançado com a expansão para a Ásia. A diferença é que a conquista do território árabe evitaria que esse inimigo mais próximo de Portugal, ficasse forte e perigoso.
No último passo, o inventor da navegação é amaldiçoado, o que servirá de gancho para um ataque ao desejo de superar limites – inerente a muitas invenções e descobertas, o que realmente caracteriza um herói. No entanto, o “venerando” faz uma seleção tendenciosa de personagens que com sua ousadia saíram prejudicadas, dando a entender que esse sentimento faz parte dos defeitos da condição humana. Porém esse é o motor da ação que transformará o povo português digno de ser cantado em uma epopeia tão grandiosa.
Em suma: mais uma vez, em meio a uma narrativa de conquistas, o poeta lança mão de uma personagem que critica firmemente o caráter do herói no épico português. São 10 estâncias cheias de críticas mordazes, colocando a prova o ethós (Grego: significa caráter do herói épico grego) do “peito ilustre lusitano”, cheio de sabedoria, acreditando que sua argumentação surtirá efeito.
Canto V – O Gigante Adamastor
Após a fala do velho do Restelo, a partida. Vem aí o canto V, no qual Vasco da Gama resume a primeira parte da viagem: o fogo de Santelmo (estância 18), a tromba marinha (estância 21), a aventura de Fernão Velloso (estância 31) e, principalmente, o Gigante Adasmastor (estância 38) “- Eu sou aquelle occulto e grande cabo/ A quem vós chamais de Tormentorio”. O Gigante narra a causa de sua monstruosa transformação: uma paixão não correspondida por uma nereida (Tétis), transforma-o em pedra. Adamastor é a personificação do Cabo das Tormentas (ou Cabo da Boa Esperança), e representa, no plano histórico, a superação do Mar Tenebroso pelos Portugueses, uma vez que se trata de uma região que alterna calmarias e terríveis vendavais, de correntes marítimas que jogavam as embarcações para as pedras. Mas, Vasco da Gama, era o predestinado para ultrapassá-lo (estância 49), com uso inclusive do astrolábio. Ao contar sua história à Vasco da Gama, o titã começa a chorar e some diante dos marinheiros, esse é o momento que o capitão aproveita para passar pela região que não havia sido transposta até então.
Esse canto é singular, pois, para dar mais valor aos heróis lusitanos, Camões coloca o Gigante Adamastor personificado em Cabo das Tormentas, que após a passagem de Vasco passa a se chamar Cabo da Boa Esperança. Ultrapassar o intransponível faz do herói muito mais forte e valoroso, digno de ser cantado em uma epopeia.
É neste canto V que Camões critica o povo que só dá valor às armas, sem valorizar aquele que canta o feito dos heróis: o poeta épico (estâncias 92, 93, 95, 97). Porém, no canto III, estância 97, o poeta já faz uma exaltação às letras, por meio de um rei letrado e valoroso, D. Dinis (estância 96) e a fundação da Universidade de Coimbra, que reforça no final do canto V, concedendo heroicidade àquele que canta o feito dos heróis “dino” de memória.
Conclusão
Esta breve reflexão traz à luz a matéria da epopeia: os feitos heroicos e as atribuições de heroicidade ao herói épico. Neste sentido, a fórmula criada pelos poemas gregos é seguida a risca: cantar feitos heroicos, trazer ‘fama imortal’ e ‘glória imperecível’ aos heróis portugueses, além do caráter pedagógico do poema, já que é preciso deixar registrado em forma de epopeia a grandeza do povo português, sendo este o maior herói da epopeia camoniana.
Aqui fica registrada a primeira heroína romântica (lírica?) da epopeia: Inês de Castro, aquela que é sacrificada pelo bem do amor e do amado, a pedido do povo. Diferente do paradigma apresentado aqui de Antígona, a qual morre por querer realizar o ritual fúnebre do irmão.
Vasco da Gama acaba por usar ardis com o Gigante Adamastor, assim como faria Odisseu em seu episódio com o Ciclope, na Odisseia. O heroi que ultrapassa o “Cabo das Tormentas”, o qual, dali por diante passa a ser designado por “Cabo da Boa Esperança”, mostra seu caráter multiastucioso ao esperar que o gigante conte sua história e, em um momento de fraqueza do gigante, ultrapasse silenciosamente pelo obstáculo.
O Velho do Restelo é, assim como Nestor, o conselheiro que sempre tenta dar bons conselhos e passar sua experiência; aquele que, teoricamente, diria a máxima “É melhor um covarde vivo do que um herói morto”. Representando algo que os gregos admiravam muito: a sabedoria do ancião, a prudência.
Para finalizar, foi selecionado um parágrafo bastante elucidativo, presente no Volume I da Ilíada, de Haroldo de Campos, Nota Prévia de Trajano Vieira:
“Em seu canto, Aquiles recorda saudosamente o tempo em que, como personagem do poema, possuía κλέος (‘glória’). Percebe que há uma equivalência entre a eternidade da poesia e a do guerreiro. Se a poesia garante a eternidade do κλέος é porque ela é eterna. Colocando de outro ângulo: o aedo necessita que seus personagens ganhem renome imperecível para que a poesia adquira sobrevida. Os prodígios heróicos são uma necessidade poética. A dramaticidade do mundo heróico reflete a dramaticidade da atividade poética pois ambos, herói e poeta, trabalham para superar a transitoriedade. Daí a insistência homérica em afirmar, a todo instante, o caráter transtemporal dos feitos heróico e poético. Diríamos que há um aspecto obsessivo na maneira como o rapsodo se concentra na temática das realizações heróicas, da qual ele não se afasta, pois é em sua valorização que seu próprio valor, enquanto poeta, perdura”.
Bibliografia.
CAMÕES, Luís Vaz de. “Cantos III, IV e V”. In: Os Lusíadas. Edição Comentada por Otoniel Mota. São Paulo, Edições Melhoramentos. 1964.
CAMPOS, Haroldo. “Nota Prévia”. In: Ilíada de Homero.Volume I. (Trad. Haroldo de Campos; introdução e organização Trajano Vieira). 3ª Edição, 2ª Reimpressão. São Paulo: Editora Arx, 2002.
ROMILLY, J. de. “Sófocles ou a tragédia do herói solitário”. In: A tragédia grega. Tradução Ivo Martinazzo. Brasília: UnB, 1998.
SÓFOCLES. Antígona. In Três tragédias gregas, tradução de Guilherme de Alemida, São Paulo, Editora Perspectiva, 1997.
VERNANT, J.P. Mito e Tragédia na Grécia Antiga .São Paulo, Ed. Perspectiva, 1999.
Como citar esse texto:
BORGES, Patrícia Andréa. Os heróis nos episódios notáveis de “Os Lusíadas”. Portal Universo ao Meu Redor. Publicado em 16/12/2019. Disponível em: https://universoaomeuredorblog.wordpress.com/2019/12/16/os-herois-nos-episodios-notaveis-de-“os-lusiadas”/ . Acesso em: dia/ mês/ ano.