Medeias de Eurípides e Pasolini

Maria Callas, Medeia, 1969, Pier Paolo Pasolini.

Primeiramente, é necessário dizer que os gregos quando compunham suas tragédias, normalmente tomavam os temas da tradição mitológica[1]. Contudo, a mitologia grega não compunha um caráter canônico, um livro único e oficial. Na verdade, a origem do mito é da cultura oral: não havia apenas uma Medeia, mas Eurípides, quando escreveu a peça para o concurso, não só reuniu os mitos como, também, acrescentou uma novidade: ela assassinou os filhos. Nenhuma versão anteriormente a de Eurípides relata que Medeia mata seus filhos para se vingar de Jasão. A inovação dos dramaturgos era comum e aceitável, pois o espectador já conhecia o mito e ia à representação dramática exatamente para ver como o tragediógrafo contaria aquela história. Portanto, foi por meio de Eurípides que a história de Medeia ficou “engessada” no mito criado para o espetáculo.


Encontro de Jasão e Medeia, Amor entre eles. Uma cena do prelúdio da tragédia de Eurípides. Medeia 350-340 a.C. Local: Museu Arqueológico Regional Eoliano, Itália. (tradução livre)
https://www.alamy.com/meeting-of-jason-and-medea-amor-between-them-a-scene-from-the-prelude-of-euripides-tragedy-quot-medeaquot350-340-bce-crater-sicilian-production-detail-of-10-03-07-12-location-museo-archaeologico-regionale-eoliano-lipari-isle-of-italy-image206648614.html

Outro aspecto que é importante salientar é que a tragédia que nos chega, até o presente momento, é a tragédia recompilada na idade média, pois as tragédias da época eram escritas em papiros, material que é extremamente perecível. Além do mais, através do tempo, ocorreram várias inserções e erros de copistas, até que realmente o texto fosse “fixado”. Em aproximadamente 200 a.C. foi estabelecida a edição de Alexandria, cujo editor foi Aristófanes de Bizâncio, o gramático, que analisou e retirou interpolações desnecessárias e os erros evidentes dos copistas.

Se o teatro é o espetáculo da catarse[2], nada mais didático do que mostrar e demonstrar o que não deve ser feito, ou seja, o caráter pedagógico, o contraexemplo. Para isso, a personagem principal deve ser o avesso do exemplo a ser seguido pelas mulheres da Atenas do século V a.C. Sendo assim, a Medeia de Eurípides se torna o παραδεῖγμα do que não deve ser seguido, ainda mais se a considerarmos como bárbara na terra grega. O uso “deux ex machina”[3], por estratégia do tragediógrafo, servia para demonstrar não só que Medeia não era regida por estatutos normais, devido à sua origem, mas também, para desvelar o quão inverossímil é a interferência dos deuses nas resoluções humanas. Portanto, o “deux ex machina”, também utilizado por Pasolini na cena final, na forma de um sol escaldante, faz parte do pacote do contraexemplo a ser explicitado na pólis grega. Assim, Medeia é a mulher, feiticeira, em terra estrangeira (repudiada no novo lar), que fere as regras da hospitalidade (271-276) e mata sua prole:[4]

A ti, tenebriforme furiosa com o marido
Medeia, editei que desta terra tu saias
banida, levando contigo os dois filhos
e sem demora, como sou juiz da razão
disto aqui e não regressarei ao palácio
antes de te exilar dos termos da terra.
(TORRANO, 1991)

Medeia é mais, pois não se pode negar o poder persuasivo e retórico da protagonista, ela manipula e faz de Jasão um joguete de seus e para seus interesses. É um ἀγόν[5] dialógico entre Medeia e Jasão, pois este também possui atributos dos discursos sofistas do tempo de Eurípides. De forma ardilosa, a protagonista engendra e tece o destino de Gláucia e de seus filhos, contando ao coro (cena que aparece na íntegra no filme) de forma direta todos os passos que dará (772-799):

Já te direi todos os meus cuidados,
acolhe, porém, não por prazer, as palavras.
Enviando um de meus fâmulos a Jasão,
pedirei que ele venha à minha vista.
Quando vier, eu lhe direi com brandura
que assim também penso e que está bem;
as núpcias régias, que a nos trair contraiu,
são convenientes e bem as reconhecemos.
Pedirei que meus filhos permaneçam,
não para deixá-los em terra hostil
à mercê de inimigos a ultrajá-los,
mas para matar a filha do rei dolosamente.
Enviarei os filhos com dádivas nas mãos
à noiva, para que os não exile desta terra,
véu sutil e coroa de ouro trabalhado.
Se ela puser sobre a pele esse adorno,
terá morte maligna e quem mais a tocar,
com tais drogas untarei as dádivas.
Aqui todavia altero esta fala:
deplorei que ação há de ser feita
por mim, doravante: matarei os filhos
meus, ninguém há que os livrará disso.
Arruinarei todo o palácio de Jasão
e irei da terra, pela morte dos filhos
foragida, capaz da ação a mais ímpia,
pois incapaz do riso de inimigos, amigas!
Eia! Que me lucra viver? Nem pátria
nem palácio tenho, nem refúgio de males.
(TORRANO, 1991)

Apesar desta breve descrição, Medeia vive um conflito interno: ela ama os filhos, como aparece nos versos 1019-1023, 1040-1048, 1057-1061, 1069-1080. Todavia, ela pretende vingar-se de Jasão, como exemplifica os versos entre 1397-1398, 1351-1360, 1363-1372, respectivamente:

Assim agirei. Mas vá para o palácio,
provê aos filhos como cada dia precisa.
Ó crianças, crianças, tendes ambos cidade
e palácio, onde ao me deixarem mísera,
residireis para sempre sem a vossa mãe.
(vv. 1019-1023, TORRANO, 1991)

Pheû pheû! Por que me fixais, ó crianças?
Por que sorris para mim o último sorriso?
Aiaî! Que fazer? A coragem some, ó mulheres,
quando vi o olhar límpido das crianças.
Eu não poderia. Digo adeus às decisões
anteriores, levarei meus filhos desta terra.
Por que ferir o pai destes com estes males
e obter eu mesma duas vezes tantos males?
Eu não mesmo! Digo adeus às decisões.
(vv. 1040-1048, TORRANO, 1991)

Deixa-os, ó mísera, poupa os filhos!
Lá, vivos, entre nós, eles te alegrarão.
Ó Numes ínferos sem-latência junto a Hades,
nunca será de modo que eu permita
aos inimigos ultrajar os meus filhos!
(vv. 1057-1061, TORRANO, 1991)

Quero falar com os filhos. Ó crianças,
dai de acariciar à mãe a mão destra.
A mais amada mão, a mais amada boca,
ó figura e rosto nobre das crianças,
sede felizes ambos, mas lá; aqui porém
o pai suprimiu. Ó doce abraço,
ó meiga pele e hálito suave dos filhos!
Ide! Ide! Não posso contemplar-vos
mais, mas sou vencida por males.
Sim, compreendo quais males farei.
O furor é superior à minha decisão,
ele causa os maiores males aos mortais.
(vv. 1069-1080, TORRANO, 1991)

Ó filhos queridos!
Pela mãe, não por ti!
Tu os mataste!
Para te punir.
(vv. 1397-1398, TORRANO, 1991)

Longamente eu me estenderia contra tuas
palavras, se Zeus pai não conhecesse
o que de mim sofreste e o que fizeste.
Tu, por desonrar meu leito, não devias
Passar a vida prazenteira a rir de mim,
nem a tirana, nem quem te deu a noiva,
Creonte, impune banir-me desta terra.
Ademais, se queres, chama ainda leoa
e Cila que habita a planície tirrênia.
Contra golpeei teu coração como é preciso.
(vv. 1351-1360, TORRANO, 1991)

Ó crianças, que maligna mãe tivestes!
Ó filhos, que vos perdestes por mal paterno!
Não minha destra, porém, destruiu-vos.
Mas o ultraje e as tuas novas núpcias.
Ao leito deste o valor de seu massacre?
Parece-te que para a mulher é uma dor leve?
Para a prudente. Tu tens todos os males.
Estes não vivem mais, isto te magoará.
Eles vivem, poluidores de tua cabeça.
Deuses sabem quem principiou o mal.
(vv. 1363-1372, TORRANO, 1991)

É possível perceber, em diversas passagens, que Medeia titubeia, fica em dúvida de seus objetivos e propósitos, tal como a Medeia de Pasolini, que mostra essa ambiguidade da personagem. Porém, ela faz o que deve ser feito e realiza seu objetivo.

O filme Medeia, de Pier Paolo Pasolini, põe em evidência discursos históricos estabelecidos como lógicos. A imagem de Medeia em seu país, no início do filme, no momento do sacrifício do jovem que é esquartejado, remonta ao mito grego que não aparece na tragédia de Eurípides, além de antecipar aos fatos da atração por Jasão, o roubo do Velocino de Ouro e da morte do irmão por Medeia, Absirto, o qual é recolhido pelos moradores da Cólquida, conforme a feiticeira joga seus pedaços no momento da fuga. No filme, ainda, Medeia dialoga com o seu avô, Sol, em dois momentos: no início e, quando resolve matar Gláucia, Creonte e seus filhos, por vingança a Jasão, demonstrando o caráter mítico da personagem e sua estirpe, retomando, assim, um preceito das tragédias pelos gregos, o uso do mito.

Margaret Clementi, Gláucia, Medeia, Pier Paolo Pasolini, 1969.

Pasolini “assimila alguns elementos arcaicos por parte do mundo moderno, o momento preciso da síntese” (FUSILLO, 1996 apud MACIEL, 2005) e, diz o próprio cineasta, “A incerteza existencial da sociedade primitiva permanece como categoria da angústia existencial ou da fantasia, na sociedade evoluída” (FUSILLO, 1996 apud MACIEL, 2005). É assim que ele trará Medeia à modernidade, fazendo uma releitura da tragédia que, saindo da superfície dos conflitos, busca os seus significados míticos. Para tanto, Pasolini associará as imagens e sons que, extrapolando os significados contidos no texto dramático de Eurípides, apontarão para uma nova leitura da obra dramática. A entrada desses recursos utilizados por Pasolini fará com que o espectador, tal qual o espectador grego do século V a.C., utilize dos 5 sentidos para a catarse, trazendo, por meio delas, o mundo antigo em suas paisagens, máscaras, atualizando o caráter histórico e atribuindo-lhe modernidade na releitura pasoliniana.

Esse caráter de permanência, ou seja, de presença atualizada, aponta para uma análise da comparação entre os dois textos pelo ponto de vista da realização de uma tradução, na qual não se pode deixar de observar o reforço pasoliniano de evitar qualquer resquício de melancolia, qualquer exacerbação valorativa do Clássico.

(MACIEL, 2005)

Considerando isto, é possível afirmar que há simetria entre a Medeia de Eurípides e a de Pasolini, pois ambas são trazidas para o momento presente de sua representação. Para tanto, Eurípides traz uma Medeia enraivecida, cheia de πάθος; já Pasolini, apresenta-nos uma Medeia sempre bárbara, cuja origem não se perde. E, sendo assim, as duas “Medeias” agem por uma “justiça cara ao deus” e para vingar-se “dos inimigos”.

É importante destacar a “modernidade” de Eurípides para sua época: o tragediógrafo inserido no movimento sofista transporta sua filosofia para o teatro, trazendo ao público as discussões que moviam as ações humanas, além da descaracterização dos deuses pelo caráter mítico inserido por Homero e exemplificado por Heródoto.

Heródoto é o primeiro historiador da Grécia Antiga, sendo que, as coisas que ele não sabia explicar, recorria ao mito e, assim, a história estaria contada. É o historiador que se põe entre Homero, totalmente mágico, no sentido de mítico, e Tucídides, totalmente pragmático, para tanto destaca no prefácio do livro I:

De fato, os acontecimentos anteriores e os mais antigos ainda, dado o recuo do tempo, era-me impossível estabelecê-los com clareza, mas pelos indícios, a partir dos quais, num exame de longo alcance, cheguei a uma convicção, julgo que não foram importantes, nem quanto as guerras nem quanto ao mais.

(TUCÍDIDES, I-2)

Não que o historiador despreze o mito, ele até o revisita, porém busca racionalidade para explicá-lo e colocá-lo no contexto histórico:

[…] Vemos que ele partiu com o maior número de navios e os forneceu aos arcádios, conforme nos indica Homero, se é que para alguém o seu testemunho é suficiente.

(TUCÍDIDES, III-3)

Para Tucídides, Heródoto não escreve a verdade, pois ele não busca testemunha e não usa o método correto:

A tal ponto é negligenciada a pesquisa da verdade pela maioria dos homens que se inclinam para versão corrente […] , nem que os logógrafos compuseram visando ao que é mais atraente para o auditório de preferência ao que é verdadeiro, pois não é possível comprovar esses fatos e a maioria deles, sob a ação do tempo, ganhou um caráter mítico que não merece fé; poderia julgá-los, porém, por critérios que são os mais evidentes para os fatos antigos, suficientemente estabelecidos.

(TUCÍDIDES, XX-3)

Sendo assim, Tucídides critica seu antecessor, elimina o caráter fabular da história e, ainda, destitui-a de uma visão cíclica.

[…] mas, se todos quantos querem examinar o que há de claro nos acontecimentos passados e nos que um dia, dado seu caráter humano, virão a ser semelhantes ou análogos, virem sua utilidade, será o bastante.

(TUCÍDIDES, XXII-4)

Tendo estabelecido estes pontos, destaca-se o momento em que Eurípides desenvolve suas tragédias.

Já Pasolini desconstrói a tragédia de Eurípides: todavia, é uma forma de releitura que opta o diretor, pois trata o texto grego antigo com uma exemplar modernidade. O cineasta, em dado momento do filme, representa a conversa da protagonista do coro tal como aparece na tragédia e, presume-se, que tenha sido representada no mundo antigo: Medeia conversa com o coro, o qual responde, cantando (em Pasolini, lamentando) e dançando. Neste momento, a personagem conta ao público seus planos, depois de ter retornado a antiga magia e conversado com o Sol. Outro aspecto interessante é que, no filme, a magia bárbara de Medeia está presente em suas roupas antigas, da época de sua terra natal, como se ela voltasse a ser a mesma, com o mesmo poder de outrora. Poder este que é repudiado, tanto na peça como no filme, como práticas bárbaras que põe medo em toda população de Corinto.

A Medeia de Pasolini não carrega as afeições humanas da euripidiana, tão importante para o século V a.C. Para o cineasta, a Medeia proposta é que ela esteja além do bem e do mal proposto pelo tragediógrafo grego, mas é possível perceber que a Medeia de Pasolini é tão fria quanto a de Eurípides: ela mata de forma fria o irmão que a ajuda a roubar o Velocino, além de jogar os pedaços dele enquanto foge com Jasão. Ela demonstra um caráter que propicia ao espectador perceber que ela é capaz de qualquer coisa por um objetivo.

Razão e sentimento se revezam no filme tal como na peça; como também o valor do mítico, quando Jasão entrega o Velocino ao tio, diz: “Esta aí, mas acho que só tem “força” na terra de onde veio”. Portanto, há uma transposição: tanto o Velocino como Medeia só são fortes no estrangeiro, pois fora de seu lugar de origem, o caráter mágico perde seu efeito.

O Jasão de Pasolini subestima o poder mágico de Medeia, apesar do Centauro tê-lo avisado dos poderes inerentes da protagonista. Jasão acaba por representar uma característica importante do homem do século V a.C., mesmo em Pasolini, a representação do pensador sofista que descrê das potencialidades divinas.

Guiseppe Gentile, Jasão, Medeia, Pier Paolo Pasolini, 1969.

Nesse sentido, Pasolini tenta se afastar de Eurípides, mas se reaproxima de forma sutil, pois estabelece a cisão do mundo arcaico, religioso e bárbaro representado por Medeia; e Jasão um herói racional e pragmático, para o texto grego e o filme.

Esse ritual cindido do religioso-mítico, tão repudiado pelos sofistas e tão bem retratado por Pasolini, choca com o início da cena do sacrifício humano que, para os gregos, é feito como um movimento de interação do homem e na natureza, como um pedido-agradecimento à fertilidade. Para tanto, Pasolini e Eurípides (apesar dessa cena não existir na tragédia) recriam e repudiam o barbarismo de Medeia, retomando assim para Eurípides o contraexemplo, ou seja, aquilo que deve ser repudiado pela pólis grega por ser exemplo de barbarismo, mesmo sendo um sacrifício ao deus para dar fertilidade à terra inóspita.

Ao chegar à terra de Jasão, Medeia é privada de suas roupas originais, passando a usar a vestimenta de sua nova terra, tentando assim “apagar” seu passado e sua descendência. Porém, a relação de Medeia com o sagrado não pode ser apagada, apesar de ela renunciar tudo em nome do amor de Jasão, o qual não dá mostras de se interessar por sua vida espiritual, reafirmando, no filme, a posição da mulher vivida no século V a.C., e a questão das uniões: são totalmente comerciáveis e utilitárias, pois Medeia não passa de um “meio” para Jasão atingir o seu “fim”.

Sendo assim, tanto Pasolini quanto Eurípides abordam fatores comuns: as relações da pólis grega com o estrangeiro, ou seja, com o bárbaro e da forma como ambos abordam o tema do estrangeiro. A Atenas do século V a.C. é o lugar do apogeu cultural e filosófico de toda a Grécia, além de sua supremacia econômica. Com este sentimento de superioridade nas artes e na economia, muito mais do que uma nova forma de pensar reivindicada pelos sofistas, Eurípides recria o mito de Medeia, trazendo à cena o universo mágico e primitivo daqueles que não eram gregos, por isso inferiores.

Portanto, o civilizado e o primitivo é contraponto, tornando-se

“patente, no discurso de Jasão, as qualidades retóricas de Eurípides e a influência que sofreu por parte dos sofistas de seu tempo.[…] Eurípides transforma-o num homem de seu tempo, um ateniense comum, sem escrúpulo […]”.

(HIRATA, 1991, p.15)

E, continuando assim, marca em uma fala de Medeia a incredulidade de Jasão aos deuses (492-495).

Das juras a fé se foi, nem posso perceber
se crês que Deuses enfim não valem mais,
ou novas leis vigem entre homens agora,
já que és consciente de que me és perjuro.
(TORRANO, 1991)

Tal como a própria cidade de Atenas, por meio de seus filósofos e historiadores, passam a marcar a importância do homem grego em detrimento à interferência dos deuses em suas vidas. Todavia, essa transição religiosa é gradativa, pois Eurípides marca essa força nos povos bárbaros por meio de Medeia.

Pasolini marca fortemente essa não-existência de deus para Jasão, eliminando da personagem qualquer influência divina, demonstrando a plena racionalidade demonstrada por Eurípides, Platão e Tucídides, passando com que o homem buscasse as respostas na terra e não nas divindades. Medeia, tanto para Eurípides como para Pasolini, está no mundo mítico de Homero. Portanto, passa também a ser uma contraposição do novo e o antigo; civilizado x primitivo, racional x mítico, divino x real, tal como propõe Tucídides acerca de Homero e Heródoto.

Portanto, conclui-se que Pasolini recria a obra de Eurípides, pairando sobre esta em alguns momentos e, em outros, adentrando-a em seus aspectos culturais, históricos e antropológicos. O cineasta traz ao cinema a dualidade do mundo antigo para qual Eurípides usa como ensinamento, por meio do exemplo imposto ao estrangeiro na figura de Medeia. Jasão representa o próprio ateniense que passa a desacreditar no divino para “examinar” a natureza e procurar por “testemunhas”, como propõe Tucídides. Sendo assim, Pasolini retrata o pensamento euripidiano, sofista e desapegado aos deuses do homem grego do século V a.C.


[1] Para Apolodoro “mitografia não cria, arregimenta”; Para Homero, existe o verbo grego μυθολογέω, contar, relatar; pois, μυθολογέω é um termo posterior. Consideraremos, neste trabalho, μυθολογίᾳ como abordagem de mito por um ponto de vista. Todavia, o percurso léxico é difícil.

[2] Aristóteles. Poética, 1449β24.

[3] Resolução divina para o desfecho de uma tragédia. Na Medeia grega, na última cena, o avô de Medeia, o deus Sol, resgata-a em seu carro, para que esta fuja da ira de Jasão.

[4] Todas as traduções apresentadas neste trabalho são da tradução de JAA Torrano, 1991.

[5] Embate de forças entre dois personagens, por uma supremacia de poder.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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https://filosofema.files.wordpress.com/2008/05/aristoteles-metafisica-etica-a-nicomaco-poetica-colecao-os-pensadores.pdf . Acesso em: 17 mai. 2019.

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CARTLEDGE, P. (org.). História ilustrada Grécia Antiga. 2 ed. São Paulo: Ediouro, 2009. 

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FUSILLO, M. La Grecia secondo Pasolini. Firenze: La Nuova Italia, 1996.

HARTOG, F.  A História de Homero a Santo Agostinho. Prefácios de historiadores e textos sobre história reunidos e comentados por François Hartog, traduzidos para o português por Jacyntho Lins Brandão, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

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TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso Livro I. Texto grego estabelecido por Jacquelini de Romilly. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

VERNANT. J.P. Mito e sociedade na Grécia Antiga. Trad. Myriam Campello. 2 ed. Rio de Janeiro, José Olympio.

FILME:

Medéia. Direção e roteiro: Pier Paolo Pasolini. Produção: San Marco SpA (Roma), Le Films Number One (Paris) e Janus Film und Fernsehen (Frankfurt). Produtores: Franco Rossellini; Marina Cicogna. Filmado em maio-agosto 1969. Duração: 110 min.

Como citar esse texto:
BORGES, Patrícia Andréa. Medeias de Eurípides e Pasolini. Portal Universo ao Meu Redor. Publicado em 17/05/2019. Disponível em: https://universoaomeuredorblog.wordpress.com/2019/05/17/medeias-de-euripides-e-pasolini/. Acesso em: dia/ mês/ ano.

Publicado por

Patrícia Borges

Doutoranda e Mestre em Linguística pela Unicamp, Bacharel em Letras (Português e Grego Antigo) pela USP

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