Duas comédias gregas de Aristófanes: Os Cavaleiros e Os Acarnenses

Desenho de Aristófanes

Este breve estudo comparativo das comédias de Aristófanes Os Cavaleiros e Os Acarnenses pretende abordar a forma pela qual política do representante democrático da Atenas do século V a.C. era vista por Aristófanes, tal como a crítica que o comediógrafo faz da situação política da pólis, tendo em consideração o alvo maior da crítica nas duas peças, o representante político Cléon.

Para auxílio na análise crítica intertextual deste trabalho serão usadas as traduções para o português das duas peças, textos da Profa. Dra. Adriane da Silva Duarte; textos de Tucídides, Platão, entre outros.

Como metodologia de pesquisa, será utilizada essencialmente a leitura crítica comparativa das duas peças em questão.

Introdução

Máscara teatral do tipo Primeiro Escravo, personagem típico da Comédia Nova. Mármore, século II a.C., Museu Arqueológico Nacional de Atenas.
Fonte: Wikipédia

As comédias gregas eram apresentadas nos festivais gregos chamados Dionisíacas, por serem em homenagem ao deus Dioniso, divindade da vegetação, da fertilidade e da vinha, cujos rituais tinham um caráter orgiástico. Durante as celebrações em honra ao deus, em meio a procissões e com o auxílio de fantasias e máscaras, eram entoados cantos líricos, os ditirambos, que mais tarde evoluíram para a forma de representação plenamente cênica, como a que hoje conhecemos através de peças consagradas.

A comédia passou a integrar as Grandes Dionísias em 487 – 486 a.C. No ano de 440 a.C. O gênero comédia foi também introduzido nas Leneias, outro festival em honra Dioniso no inverno. Na comédia o coro assumia uma importância maior que na tragédia e se verificava uma maior interatividade com o público, já que os atores dialogavam com este.

Representação das Festas Dionísicas em cerâmica grega

Da Comédia Antiga sobreviveram alguns trabalhos de Aristófanes, que se inspiram na vida de Atenas e que se caracterizam pela crítica aos governantes (Os Cavaleiros,[1] Os Acarnenses[2]), à educação dos sofistas (As Nuvens) e à guerra (Lisístrata). Um dos políticos mais criticados por Aristófanes foi Cléon, que teria levado Aristófanes aos tribunais por se sentir ofendido.

Aristófanes tratava a comédia como didática, por isso se achava um “educador”, por meio de sua poesia, afinal, para o comediógrafo a comédia tem valor moral e político, educa e torna melhor o homem, conforme ilustra em suas peças, aqui citadas, As Rãs e Os Acarnenses:

Às crianças é o mestre que as ensina, aos adultos são os poetas.

As Rãs, v. 1055 sg.

Porque o que é justo também é do conhecimento da comédia.

Os Acarnenses, v. 500 sg.

Essa questão didática nos remonta imediatamente aos tragediógrafos e, mais ainda, aos épicos, aos quais tão vorazmente Platão critica, dizendo que seus poemas não são bons exemplos didáticos, por isso, deveriam ser expulsos da cidade.

A referência aos tragediógrafos é textual tanto em Os Acarnenses, em As Rãs, como em Os Cavaleiros. Na primeira peça, é Eurípides quem aparece, ao qual Aristófanes faz um ‘paratrágico’, colocando, entre outros exemplos, discursos elevados na boca de um servo. Outro exemplo, é a presença do mensageiro, que nas peças de Eurípides sempre nos traz o momento do reconhecimento e da peripécia, além das referências feita a maneira sutil de confabulação presente nas obras do autor [“Ora… como é que hei eu hei de dizer a coisa de uma maneira habilidosa, à Eurípides?” (Os Cavaleiros, v. 17 sg.)].

Não só esta referência, como também a peça perdida do autor intitulada Télefo, ao qual Diceópolis se espelha em determinado momento da narrativa[“Por isso, desta vez, antes de começar a falar, deixem me vestir a roupa que mais piedade possa inspirar” (Os Acarnenses, v 384-385) (Travestimento de Diceópolis em mendigo coxo). “Esse mesmo, o Télefo. Por favor, dá-me cá os trapos dele”) (Idem, v. 431)]. Em As Rãs, a referência se dá aos três tragediógrafos mais famosos: Sófocles, Ésquilo e Eurípides, com o intuito de trazer algum dos três do Hades. O retorno é de Ésquilo, trazendo outra característica da obra aristofânica: a sempre lembrança do passado glorioso e da tradição.

A guerra e a paz em Atenas afloram logo em Os Acarnienses, cujo protagonista, Diceópolis parte para estabelecer com Esparta uma paz individual.[3] Já a peça Os Cavaleiros de Aristófanes é uma crítica desenfreada a Cléon[4] – um dos homens mais poderosos de Atenas.

Quando Aristófanes propõe a paz na voz de Diceópolis, coloca em voga algo muito importante para a hegemonia ateniense, o poder da arké e o passado heroico e glorioso. Por isso, é inicialmente acusado de traição da pátria.[“Um descarado, é o que tu és, um infame, um traidor da pátria” (Os Acarnenses, v 289 sg.). “É para ele governar sobre os helenos” (Os cavaleiros, v. 798). ]

A grande Atenas, a cidade-estado mais importante da época, poderia se sentir mais frágil se propusesse a paz. Todavia, o poeta tenta mostrar ao povo que quem mais sofre com a guerra é ele mesmo, o homem simples, que acaba por ser a grande vítima do conflito.

Diceópolis, como próprio nome diz, “cidade justa”, é o representante antagonista dos políticos que se seguiram a Péricles. Com o discurso notoriamente contra a guerra, tendo em vista a paz, ele destoa das personagens que buscavam o poder em Os Cavaleiros, os quais travam um longo agón sobre quem poderia ser o “mais sem escrúpulos” para governar a cidade. Para tanto, estes personagens agonísticos se valem de uma retórica que evidencia a bajulação[5] da cidade, sem levar em consideração o “bem comum” e, sim o proveito próprio, os quais poderiam se valer de discursos falaciosos que enchiam de prazer o povo, fazendo um uso da retórica que, posteriormente, Platão classificaria como característica dos discursos sofísticos.

Além do mais, Os Acarnenses, traz à luz a personagem do Sicofanta[6], aquele que vive de denúncias e de falsas conspirações, ganhando em julgamentos[7] na ágora, valendo-se não necessariamente da verdade, mas do que este mundo constituído de processos poderia se valer: de lucro. Sendo, assim, facilmente manipulada a democracia[8] era retratada e criticada pelo comediógrafo.

Também elemento característico do sicofanta são as calúnias que são elementos comuns nas traduções que se referem ao Cléon[9], aparece em Aristófanes e em Tucídides, ou seja, a imagem que se forma de Cléon é de um demagogo (condutor do povo), cujo discurso é caudaloso, ensurdecedor, prazeroso e falacioso: “A nossa cidade, de uma ponta a outra, puseste-a num rebuliço, ensurdeceste a nossa Atenas à força de berros” (Os Cavaleiros, v. 310 sg.).

O “povo” representado nas peças de Aristófanes se deixava levar pela “boa retórica” de seus representantes, enquanto Péricles se utilizava do discurso persuasivo, tendo em vista o “bem da cidade”. Os que se seguiram procuravam adular e fazer suas vontades, não necessariamente que fosse o melhor para o bem comum. A metáfora utilizada pelo autor é a da culinária, pois o povo, estando bem alimentado, não causaria chateações e não enxergaria o que realmente decorrente das decisões políticas tomadas por seus governantes: “A culinária tornou-se, por excelência, uma imagem perfeita da política; ‘empanturrar’ passou a ser sinónimo de ter sucesso na administração pública” (SILVA, s/d). É a retórica da lisonja representada pela comida.

Portanto, é uma forma de persuasão apresentada por Aristófanes presente nas duas peças. O “povo”, entretanto, ao final da peça Os Cavaleiros, mostrou-se cansado de ser enganado: “Não agüento mais ouvir falar em cevada. Já fui enganado vezes sem conta por ti e pelo Túfanes” (Os Cavaleiros, v. 1102 sg.). Há um reconhecimento do povo na peça Os Cavaleiros:

“Povo:
O que tu estás dizendo? Então era assim que eles lidavam comigo, e eu sem perceber nada?

Salsicheiro:
É que teus ouvidos – caramba – abriam-se como um guarda-sol para logo se voltarem a fechar.

Povo:
Será que realmente fiquei assim bobo e pateta?”

[…]

Povo:
Tenho vergonha dos meus erros de antigamente.

Salsicheiro:
Mas a culpa não era tua, fica tranquilo, a culpa era dos que sabiam te enganar”

(versos 1347-1349 e 1355-1357).

Diceópolis culpa a todos pela guerra, ao lavrador que aparece no verso 1017, ele trata com rudeza porque ele não votou pela paz na assembleia, e, por ser uma democracia, todos têm o dever de votar e participar, pois as responsabilidades são de todos, portanto, aí está uma crítica àqueles que não se importam com os acontecimentos da cidade. Por isso, em Os Acarnenses, aparece desinteresse do povo em participar das decisões da assembleia.

É interessante observar que há elementos na narrativa que aproximam a prática política da época, principalmente dos oradores posteriores a Péricles, à tirania. Esse é um terror para os atenienses, sendo assim, a crítica impingida por Aristófanes é aterradora para o povo. Considerando que a comédia é didática, o poeta está alertando para o que pode vir, como, por exemplo, a “Tirania dos Trinta”, que se segue historicamente a democracia ateniense.

Estes oradores que se sucederam Péricles tinham por característica sua não origem oligárquica, sendo pessoas do povo, por exemplo, Cléon tinha um curtume, portanto, trabalhava com couro[10], Eucrates, negociante de estopa: “aparece um negociante de estopas, que será o primeiro a administrar a cidade” (Os Cavaleiros, v. 130 sg.). Todos são da ágora, sendo assim, Péricles é o paradigma na formação do caráter, porém nada é dito sobre preconceito da pobreza, isso não é histórico.

Conclusão

Há um sentido didático na comédia, tal como afirma Aristófanes, discutindo a política e a paz. Ele é um crítico do seu tempo, aquele que usa a techné para denunciar as peculiaridades políticas de sua época.

É interessante ver que nas duas peças aparece um salvador. Em Os Acarnenses, é Diceópolis; para a peça Os Cavaleiros, o Salsicheiro. Diceópolis profere o discurso da justiça, claro que todo engajado na linguagem da comédia. Já o Salsicheiro, espelha o político de sua época: o agón entre ele e Paflagônio é para determinar quem mais engana o povo com discursos que mostrem dolo e tragam prazer. Posteriormente, há uma peripécia para o Salsicheiro, até mesmo porque Aristófanes tinha que apresentar uma solução, ele não podia deixar como paradigma alguém que não tinha escrúpulos, já que a finalidade da peça é didática.

Na peça Os Cavaleiros não há protagonista, mas as personagens dividem as mesmas características funestas. Há um povo crédulo que prefere não discutir as políticas da cidade, sendo claramente manipulado por discursos prazerosos ou por saciedade momentânea.[11]

Aristófanes coloca na cara do espectador que tipo de política faz Cléon e o quão perto demonstra estar da tirania, posto que o governante se apresenta como quem faz as vontades do povo, não sendo necessariamente o melhor para o bem comum.

Cléon é o que engana, aquele que dá algo, mas se apropria de muito mais em troca, é o que conhecemos no Brasil pelo “rouba, mas faz”. É o político que manobra o povo de acordo com as suas vontades. Todavia, o “povo” aristofânico tem uma “epifania” e acorda do transe, para a realidade política de sua Atenas, rumo à derrocada política. Aristófanes assiste aos acontecimentos, denuncia, mas não consegue evitar que a tirania volte à sua cidade, e a comédia passa a se calar para este tipo de assunto assumindo uma nova postura depois das obras de Aristófanes.

Aristófanes (muito contemporaneamente falando) se vivesse hoje, acho que seria um integrante da troupe (atual) do Zorra, do Porta dos Fundos ou dos Melhores do Mundo. Com humor ácido e atrevido, sem medo de ser rechaçado pela mídia, criticando inclusive esta mídia a quem serve. Creio que Aristófanes, em sua época, só conseguiu falar e expor o que queria exatamente por usar das artes, do teatro e da comédia, além estar em um regime democrático, mesmo não sendo o mesmo tipo que vivemos atualmente, que permitia este tipo de discussão.

Particularmente, não acho que o comediógrafo condenasse o regime democrático, mas sim que condenava a forma pela qual o regime se apresentava, com as práticas oratórias que não contemplavam o “bem da cidade”, mas sim a “beleza” do discurso, além da quantidade de processos e julgamentos e a forma pela qual eram conduzido pelos juízes: todos podiam processar, tudo era passível de processo (As Nuvens). Além da presença de profissionais que possibilitassem e ensinassem essas práticas enganatórias aos cidadãos, corrompendo a cidade pelo discurso.

Para Aristófanes, parece, que a solução estava na volta de seu passado, aos gloriosos heróis de Maratona, por exemplo, isso citando Ésquilo e o seu retorno à vida (As Rãs). O comediógrafo não poupava ninguém, potencializando os defeitos e minimizando as qualidades das pessoas atacadas, para, é claro, causar efeito dramático e provocar o riso.

O autor denuncia inclusive a apatia do povo que se deixa levar por belos discursos sem se posicionar politicamente ao que acontece na cidade, considerando que um regime democrático prevê a participação popular (claro que não no sentido que atribuímos hoje).

O “povo” literário de Aristófanes acorda do transe provocado pelos discursos políticos. E nós, quando iremos acordar para a nossa realidade?

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓFANES. Os Acarnenses. Tradução de Maria de Fátima de Souza e Silva. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.

ARISTÓFANES. As Rãs. Tradução de Américo da Costa Ramalho. Lisboa: Edições 70, 1996.

ARISTÓFANES. Os Cavaleiros. Tradução de Maria de Fátima de Souza e Silva. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1985.

DUARTE, A. S. O Dono da Voz e a Voz do Dono: a Parábase na Comédia de Aristófanes. 1. ed. São Paulo: Humanitas, 2000. v. 01. 308 p.

LESKY, A. História da literatura grega. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Porto, 1995.

PLATÃO. A República. Tradução: Maria Helena da Rocha Pereira. 9ª edição. Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa: Porto, 2001.

RIBEIRO, M.C.L. A Representação do dêmos nas Comédias de Aristófanes. In: ANAIS do III Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade – ST 06 – Poder, cultura e diversidade na Antiguidade e no Medievo.

SANTOS, M. M. A teoria literária aristofânica. São Paulo: Clássica, 5/6, 83-95, 1995/1993.

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SILVA, M.F.S . A comédia grega antiga. Aristófanes. Biblioteca de Autores Clássicos. Editora FLUC/ INCM. S/d.

SILVA, M.F.S . Políticos e mulheres na Grécia Antiga. Conferência proferida na Faculdade do Porto, em 12 de março de 1986.

Notas de fim:

[1] Esta peça é uma crítica a Guerra do Peloponeso.

[2] A primeira das peças de Aristófanes que conservamos, ou seja, a comédia mais antiga da produção grega que até nós chegou em forma completa.

[3] A paz é inviável de ser discutida na assembléia, devido a defesa da guerra por aqueles que tiram proveito dela. Por isso Diceópolis busca a paz individual. “Toma lá 8 dracmas e vai, em meu nome, fazer trégua com os lacedemônios, só para mim, para meus filhos e para minha mulher”. (Os Acarnenses, v 130).

[4] Cléon (fl. 430 a.C. – 422 a.C.), influente político que se destacou em Atenas após a morte de Péricles (495 a.C. e 429 a.C.), foi diretamente satirizado por Aristófanes e, segundo a tradição, processou-o sem sucesso em 426 a.C. Nova sátira, ainda mais pesada, motivou um segundo processo em -424, resolvido aparentemente através de acordo realizado fora dos tribunais. Citado textualmente no verso 301 de Os Acarnenses, além da peça que será apresentada no ano seguinte, Os Cavaleiros. “O meu ódio por ti é mais forte ainda do que por Cléon, que eu hei-de retalhar para fazer calçados para cavaleiros” (Os Acarnenses, v 300 sg.).

[5] Está na fala do 1º escravo, na peça Os Cavaleiros: “O povo, conquista-o quando quiseres, com umas palavrinhas doces, lá da tua especialidade” (v. 215 sg.). A questão da adulação aparece bastante nos agones, sempre associado à ideia de engano e dolo: “Anda lá, meu povinho querido” (Os Cavaleiros, v 726).

[6] Caluniador profissional, delator, só existe em Atenas, é um produto dos processos e julgamentos, ao qual Aristófanes tenta “exportar” à Beócia. (Os Acarnenses, v. 909).

[7] Não se esquecer que os tribunais são instituições essencialmente democráticas e são isonômicas.

[8] Não só a democracia, mas também, a Assembleia e a Pnix, que facilmente é “amassada e modelada” de acordo com a vontade daqueles que são providos de “belos” discursos, todavia, nem sempre “bons” discursos, mas que causam “prazer” ao serem ouvidos.

[9] A peça recupera um acontecimento presente em Tucídides (4, 27-30), ao qual depois de caluniar os generais, Cléon rouba a estratégia de Demóstenes e sai vencedor de uma grande batalha, voltando à cidade aclamado com honras de herói. “Quais? Quando os generais se puseram em debandada de Pilos, eu dei um salto até lá e trouxe os lacedemônios como prisioneiros” (Os Cavaleiros, v. 743 sg.).

[10] A referência é direta a Cléon na fala do salsicheiro: “Um tipo como tu, que despedaçava o couro de um reles boi, de modo a parecer grosso, e o vendia aos camponeses – uma trapaça grande” (Os Cavaleiros, v. 316 sg.).

[11] A minha mais direta lembrança é a posterior política do “Pão e Circo” empreendida por Roma.

Como citar este texto:

BORGES, Patrícia Andréa. Duas comédias gregas de Aristófanes: Os Cavaleiros e Os Acarnenses. Portal Universo ao Meu Redor. Publicado em 13/12/2019. Disponível em:  https://universoaomeuredorblog.wordpress.com/2019/12/13/duas-comedias-gregas-de-aristofanes:-os-cavaleiros-e-os-acarnenses/. Acesso em: dia/ mês/ ano.