O ano era 2004 e lá estava eu de volta ao cursinho. Mais uma vez como bolsista (tal qual 1994!), dez anos depois.
Dessa vez, eu estava em um cursinho popular, apesar de ter feito provas em vários cursinhos para ganhar bolsa de estudos. Em um deles, a minha bolsa chegava a 90%, mas meu irmão, um dos fundadores desse cursinho popular, disse: “Estude lá e aprenda como pensam os uspianos”. Lá fui eu.
Eu já tinha 29 anos e queria voltar aos estudos. No ano de 2003, estudando sozinha, eu tinha chegado na lista de espera da Fuvest, mas fiquei beeeem lá atrás. Então essa era a hora de recomeçar. De novo, dez anos depois, na sala de aula.
Ao meu lado, sentaram duas mocinhas: uma bem falante e outra mais calada. Fizemos amizade. Elas duas eram amigas de infância e estavam juntas na empreitada de buscar uma universidade pública para estudar. Universidade Pública parece um sonho muito distante da gente quando estamos na escola, no cursinho, temos um sopro de esperança em conquistá-la. Tudo parece fácil e possível.
Passamos a conversar, a sentarmos juntas. Uma queria estudar História; a outra, Administração. A que queria estudar Administração não gostava muito de matemática. Portanto, perguntei: “Por que quer estudar Administração se não curte matemática?” Ela não soube responder, mas talvez, tivesse visto na Administração a forma de sobreviver no trabalho. Neste momento, dei para ela o mesmo conselho que recebi do meu irmão: “Faça Letras. Se quiser, depois, terá formação para fazer outra curso. Somos pobres, não podemos comer o pudim colocando a colher no centro que está quente, precisamos ir pelas beiradas”. Falei o mesmo para ela: “Preste Letras, depois, se ainda quiser fazer Administração, terá bagagem universitária para isso”. Ela, não sei por que razão, seguiu o conselho. Neste momento, a amizade ficou mais forte.
Eu estudava 24 horas por dia, só falava em vestibular, fazia todas as provas anteriores, resolvia todos os exercícios da apostila. Eu via o caminho da Universidade como único meio de ascensão profissional; como a única forma de poder “ganhar” mais. Em outubro, pirei. Enlouqueci mesmo. Na aula de Física, comecei a gritar com todo mundo. Fiquei enlouquecida com as pessoas que não levavam aquilo a sério e perdiam a oportunidade. A professora me tirou da sala e disse que eu precisava procurar ajuda, eu estava me cobrando demais. Procurei e comecei a tomar um remédio que me ajudou a retomar a concentração.
Entrou o mês de novembro: comecei a prestar vestibular em novembro e só terminei em janeiro. Só pulou o final de semana do Natal. Prestei, na sequência: Unicamp, USP, PUC, Unesp (recesso de natal!), USP (2ª Fase) e terminei com a Unibero (passei lá pelo Prouni – fui 1ª Turma do Prouni, mas, na época, também precisávamos prestar vestibular da instituição para poder ter direito à vaga).
Fizemos Enem e estávamos todos na média (menos o “cabeção” que estudava na turma que acertou TODAS as questões!) e aí, vai o professor e fala na sala de aula de um cursinho popular, de pessoas que vieram de escola pública e se esforçaram ao máximo aquele ano para preencher as lacunas de um Ensino Médio deficitário: “Se você acertou menos de 40 questões do Enem, esquece, você não vai conseguir nada!” Mais da metade da turma sequer voltou para as aulas, simplesmente, porque perdeu as esperanças. Como alguém se acha no direito de matar suas esperanças? Nós três continuamos lá, acho que nada mataria minha esperança (e olha que fiz 43 questões!).
Saiu a nota de corte da Fuvest. Eu consegui ir para segunda fase; minha amiga, não. Ela ficou desconsolada, não queria ir mais para o cursinho e eu só pedi que ela não desistisse. Ninguém tem o direito de matar nossos sonhos!
Ela prestou Universidade Estadual de Londrina e passou. Quando eu passei na USP, foi ela que conseguiu ver a lista dos aprovados; quando ela passou na UEL, eu passei em um cursinho, peguei a lista, vi o nome dela (ela passou em vigésimo lugar!!!) e liguei para ela contando. Ela me contou a minha vitória e eu contei a dela.
Passei na PUC em segundo lugar geral. Liguei para ela e contei e, o que ela me disse foi: “Eu te empresto a minha poupança para você fazer matrícula e pagar a primeira mensalidade”. Eu agradeci, não aceitei e respondi: “Pago o primeiro mês, mas e depois? E se não sair bolsa?” Que amigo faz isso por você? Tinha apenas um ano que nos conhecíamos e ela dá uma demonstração de amizade assim? Chorei por horas e sempre choro com isso quando me lembro.
Ela foi para UEL. Foi um começo bem difícil: ela estava sozinha, longe da família… Foi bem difícil mesmo, mas começou a se adaptar. Entrou para Iniciação Científica, fez amigos e começou a construir o futuro dela.
Em 2008 ela se formou. Fui para Londrina para ver a formatura dela e ficar feliz pela vitória dela. Fazia alguns anos que não nos víamos e passamos a noite acordadas conversando. Eu fiquei tão feliz! Ela tinha vencido.
Na sequencia, ela engatou o mestrado (e eu ainda nem tinha me formado!) e foi para dar aulas como temporária na Universidade Federal do Tocantins. Terminou o mestrado e, em 2018, obteve o doutorado. É professora de uma Universidade Federal, faz a diferença, transforma vidas diariamente; realiza sonhos de tantos alunos como nós fomos. Forma pessoas, forma professores, muda realidades de vida diariamente. É uma vencedora.
Em 2017, decidi tentar mais uma vez o mestrado. Pedi ajuda dela. Ela leu o meu projeto e me ensinou a escrever um projeto, mostrando o que era bom e o que era importante. Eu queria tentar várias universidades (há anos eu tentava entrar no mestrado e eu não conseguia!), ela pediu para eu focar. Pensei apenas na USP e ela perguntou: “Por que não tenta Unicamp?”. Respondi que achava que não tinha capacidade. A Unicamp sempre foi um sonho, desde a graduação; além do mais: o curso da Unicamp é avaliado em nota 7 pela Capes há muitos anos. E ela continuou incentivando que eu devia pelo menos tentar. Tentei. Fui passando de fase, sem acreditar que poderia chegar no final. Cheguei na entrevista e recebi um leve elogio do projeto, que estava bem escrito. E eu soube quem sem ela eu jamais teria chegado, não só porque ela me ajudou, mas porque ela teve mais fé em mim do que eu mesma.
Mais um brinde à amizade!